A proibição da planta não nasceu de um consenso científico, e muito menos de um perigo real à saúde pública. A verdade é que ela foi construída sobre preconceitos, interesses econômicos e disputas de poder — e moldou a forma como a sociedade enxerga a erva até hoje.
Neste artigo, você vai entender como começou essa história, desde os primeiros decretos num Brasil escravocrata até a “Guerra às Drogas” que espalhou um modelo de repressão pelo mundo. E, principalmente, como a política proibicionista foi usada (e ainda é usada) como ferramenta de controle social.
A Marginalização da Planta
Pra entender a proibição, é preciso ter em mente uma coisa: a guerra contra a cannabis nunca foi realmente uma guerra contra a planta, e sim contra as pessoas que a usavam.
No início do século XX, a erva não era vista como uma droga perigosa. Nos Estados Unidos, era vendida em farmácias como extrato medicinal, usada para tratar dores, insônia e cólicas. Mas, quando o álcool foi legalizado novamente após o fim da Lei Seca, um novo “inimigo público” precisou ocupar esse papel.
Durante a proibição do álcool, o discurso oficial era de “proteger a moral” e “reduzir a violência”. Na prática, o resultado foi o oposto: o crime organizado cresceu, as máfias enriqueceram e o Estado ganhou justificativa para investir em mais repressão.
Quando a Lei Seca acabou, o álcool já tinha poderosos aliados — era consumido pelas elites, associado à cultura, à religião, ao vinho da missa.
A planta, por outro lado, não tinha quem a defendesse. Ela estava associada a comunidades marginalizadas, especialmente trabalhadores negros e imigrantes mexicanos.
E foi nesse contexto que nasceu o termo “marijuana”: uma palavra popularizada justamente pra conectar a planta a estrangeiros e minorias raciais, reforçando preconceitos e alimentando a xenofobia.
O Homem por Trás da Guerra
A figura central dessa história é Harry J. Anslinger, chefe do recém-criado Departamento Federal de Narcóticos nos EUA, na década de 1930. Foi ele quem liderou a primeira campanha global de demonização da planta. Anslinger usou o medo como ferramenta. Espalhou manchetes sensacionalistas associando o consumo à violência, insanidade e degeneração moral.
Mas o que choca é que o racismo era explícito.
Em suas próprias palavras, abre aspas:
“Consumir a erva faz com que os negros achem que são tão bons quanto os homens brancos… A principal razão para proibi-la é seu efeito sobre as raças degeneradas.”
— Harry Anslinger, chefe do Departamento Federal de Narcóticos dos EUA.
Inacreditável.
Esse tipo de pensamento moldou políticas públicas, prisões e perseguições por décadas. Além disso, grandes magnatas da mídia como William Randolph Hearst, dono de impérios jornalísticos, ajudaram a espalhar esse discurso.
Hearst tinha interesses diretos nas indústrias do papel e do algodão, concorrentes do cânhamo. O resultado? Uma campanha orquestrada de desinformação.
Em 1937, veio o golpe final: o Marijuana Tax Act, a primeira grande lei federal contra a cannabis nos EUA. Ela não criminalizava diretamente, mas criava uma taxação absurda — tornando a produção e o comércio inviáveis.
A audiência que aprovou a lei durou apenas algumas horas, sem estudos científicos sérios, ignorando médicos e pesquisadores. Assim, a planta foi banida não por ciência, mas por racismo, lobby e medo.
Do Mundo para o Brasil
A história da proibição no Brasil também tem raízes profundas — e coloniais. A planta chegou ao continente africano por volta do século X, sendo usada em rituais, medicinas tradicionais e até como moeda.
Quando pessoas africanas foram escravizadas e trazidas para o Brasil, elas trouxeram consigo sementes da planta — escondidas nas roupas, bonecas, cabelos. Aqui, em meio ao trabalho forçado, a erva era um elo com a terra natal, uma forma de resistência espiritual e cultural.
Em 1830, o Código de Posturas do Rio de Janeiro já tentava coibir “hábitos de escravizados no centro da cidade” — uma das primeiras referências indiretas à proibição da planta. Mas a proibição específica só viria um século depois, nos anos 1930 — a mesma época em que os EUA iniciavam a sua guerra particular com Anslinger.
Em 1932, o governo brasileiro criou a Comissão Nacional de Fiscalização de Entorpecentes, ligada ao Ministério das Relações Exteriores.
Décadas depois, em 1980, essa comissão foi transferida para o Ministério da Justiça, tornando-se o Conselho Federal de Entorpecentes (CONFEN) — e muitos historiadores consideram esse o marco da “Guerra às Drogas” no Brasil.
A Guerra às Drogas
Nos anos 1970, o presidente norte-americano Richard Nixon declarou oficialmente a “War on Drugs”. Anos mais tarde, um de seus conselheiros, John Ehrlichman, admitiu publicamente que a verdadeira intenção era criminalizar negros e ativistas contrários à Guerra do Vietnã.
Eles sabiam que não podiam tornar “ser negro” ou “ser contra o governo” um crime — mas podiam associar essas identidades ao uso de substâncias e usar isso como ferramenta de repressão política.
Nos anos 1980, Ronald Reagan intensificou ainda mais essa política.
O resultado foi encarceramento em massa, especialmente de jovens negros e latinos — um fenômeno que ecoou na América Latina. Enquanto isso, em países como a Holanda, nascia uma política de tolerância: os primeiros coffeeshops e bancos de sementes surgiam em Amsterdã, mudando completamente a relação com a planta.
Enquanto uns queimavam plantações, outros faziam história cultivando. No Brasil, a repressão seguiu o modelo norte-americano: mais prisões, mais violência e um sistema carcerário superlotado — enquanto outros países já caminhavam para a legalização.
A Proibição Hoje
Em 2025, o mapa da legalização global é outro. Países como Uruguai, Canadá, México, Alemanha, Malta, Tailândia e África do Sul já legalizaram o uso recreativo. Outros, como Portugal, Espanha, Argentina e Colômbia, adotaram políticas de descriminalização.
Mas ainda há regiões do mundo onde a planta continua estritamente proibida, muitas vezes sustentada por tradições religiosas, interesses econômicos e medo político. O ponto crucial aqui é entender por que a história da proibição começa nos EUA: não porque eles foram os primeiros a proibir, mas porque criaram o modelo de proibição moderna — aquele que mistura racismo, propaganda, lobby e controle social.
O Marijuana Tax Act de 1937 foi o início do efeito dominó que atingiu o mundo inteiro. Esse modelo foi exportado por tratados internacionais e pela influência cultural norte-americana, moldando leis, polícias e percepções sociais.
O Que Fica Dessa História
A criminalização da planta nasceu de uma mistura tóxica de racismo, controle social e interesses econômicos. Mas a história também mostra que a resistência sempre existiu — dos rituais africanos às comunidades que cultivam em casa hoje, em busca de autonomia, saúde e liberdade.
A política proibicionista nunca conseguiu acabar com a planta — e talvez porque o que ela representa vai muito além de uma substância: ela é símbolo de cultura, espiritualidade e resistência.
Se você chegou até aqui, comenta aí o que mais te marcou nessa história — e o que você acha que precisa mudar no debate sobre a planta hoje. Boas ideias. Bom cultivo.
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